Ana Maria entrou muito preocupada e bastante ansiosa no consultório. Há algumas semanas ela consultou com outro profissional para ver como estava sua saúde nos seus recém-completados 30 anos de vida. Ela saiu de lá com uma lista enorme de exames para fazer, incluindo um “check-up hormonal completo”. Ana Maria sente-se muito bem, não apresenta qualquer queixa clínica, nenhum histórico de doenças prévias mais graves, e afora o estresse habitual do dia-a-dia, mantem um padrão de vida bastante saudável. Ana Maria é mãe de uma linda menina de 4 anos, nascida de parto normal após uma gestação tranquila e sem qualquer intercorrência. A filha Olivia foi amamentada durante o primeiro ano de vida, e Ana Maria voltou a usar pílula anticoncepcional logo após suspender a amamentação.
Entre os exames do “check-up hormonal”, Ana Maria apresentou um valor de cortisol no seu sangue de 44 µg/dL, e ao lado do resultado aparecia, como de costume, o valor de referência “normal” entre 5 e 25 µg/dL. Ela voltou ao médico requisitante e ele a diagnosticou com “Síndrome de Cushing”, solicitando uma nova bateria de exames, incluindo ressonâncias magnéticas de abdome, tórax e da glândula hipófise. Ao voltar para casa, Ana Maria estava muito assustada e correu para pesquisar sobre sua “doença” no Google. Foi aí que o mundo de Ana Maria veio abaixo ao constatar a seriedade do problema que lhe foi atribuído. Horas mais tarde, refletindo com calma, ela ficou intrigada por não apresentar nenhum dos sintomas e das características físicas que ela observou nos textos e nas imagens sobre a doença que ela encontrou na Internet. Decidiu, então, procurar uma segunda opinião.
A Síndrome de Cushing é o resultado da produção excessiva de cortisol, hormônio produzido pelas adrenais ou supra-renais, duas glândulas localizadas acima de cada um dos nossos rins. Ela também pode ser decorrente do uso prolongado de remédios à base de corticoides. O hipercortisolismo endógeno pode ser causado por um tumor benigno (adenoma) da glândula hipófise ou por tumores situados em outros órgãos na cavidade torácica ou abdominal, que produzem quantidades excessivas do hormônio ACTH, que estimula as glândulas adrenais a secretarem grandes quantidades de cortisol. Outra possibilidade é que o hipercortisolismo seja consequência da produção aumentada do próprio cortisol por um tumor da glândula adrenal. Independente da causa, a Síndrome de Cushing se caracteriza por ganho de peso com redistribuição da gordura corporal, resultando num arredondamento da face (chamada face de lua cheia), acúmulo de gordura na parte superior das costas (chamada de giba), no tronco (obesidade visceral), e um consumo de gordura e da massa muscular nos braços e nas pernas, provocando fraqueza muscular. A pele se torna bastante frágil, sendo comum o desenvolvimento de acne, estrias vinhosas, aumento de pelos nas mulheres, e equimoses. A doença predispõe ao aparecimento de pressão alta diabetes, osteoporose, infecções, anormalidades ginecológicas e psiquiátricas. Em crianças, pode provocar parada do crescimento. E muito importante, ela não aparece em pessoas como Ana Maria, sem nenhum sintoma ou sinal clínico.
Recordo-me como se fosse hoje a mudança na expressão facial de Ana Maria quando lhe disse que ela não tinha absolutamente nada. Primeiramente eu expliquei a ela que a Síndrome de Cushing não é diagnosticada com uma única dosagem de cortisol no sangue, e sim através da sua dosagem em um teste endócrino (chamado teste de supressão com dexametasona), normalmente combinado com dosagens de cortisol na urina e na saliva. Obviamente, esses exames somente são realizados diante da suspeita clínica de hipercortisolismo, e jamais em “check-up hormonal”. Depois expliquei o porquê do nível de cortisol estar acima dos valores de referência. Após ser produzido nas glândulas adrenais, o cortisol é levado pela circulação sanguínea aos diferentes tecidos do corpo onde exerce suas atividades biológicas. No sangue, o cortisol não circula livre e sim ligado a proteínas transportadoras, entre elas a CBG (cortisol binding globulin) que é produzida no fígado. A produção e a metabolização da CBG são afetadas pelo estrogênio, hormônio presente nas pílulas anticoncepcionais e nas terapias de reposição da menopausa. Por essa razão, o uso de pílula comumente interfere na dosagem de alguns hormônios como o cortisol, dando resultado falsamente elevado, como ocorreu com Ana Maria. Naturalmente isso não representa doença nenhuma, refletindo apenas um fenômeno biológico. Ela quis tirar a prova dos nove, e suspendeu o anticoncepcional para repetir o exame de sangue. Foi uma alegria testemunhar o sorriso e o alívio no seu rosto diante do novo resultado laboratorial: cortisol igual a 17 µg/dL! Histórias como a da Ana Maria se repetem nos consultórios, e por caminhos tortos, vamos lentamente ganhando aliados na luta contra uma “doença” que infelizmente tornou-se muito prevalente: a iatrogenia provocada por check-up hormonal realizado por profissionais não especialistas e desqualificados.
História baseada em fato real com nomes fictícios